Religião Viva

Os leitores poderão estranhar quando eu digo que há religiões vivas e mortas. É justamente o que pretendo explicar agora. Religião viva é aquela que está associada ao quotidiano, e a morta é exatamente o oposto. Infelizmente, é raro encontrar uma religião dentre as muitas existentes que esteja perfeitamente entrosada no quotidiano.

Em sua maioria, as doutrinas são elaboradas com perfeição, mas lamentavelmente não podemos esperar muito de sua força de edificação do carácter humano. Na época em que os fundadores de cada religião actuavam, há centenas ou milhares de anos, certamente essa força era grande e estava de acordo com a situação social da época. No entanto, sabemos que a capacidade de propagação dessas religiões foi enfraquecendo com o passar do tempo, até atingir a condição em que hoje elas se encontram. Não há o que se fazer, porque este é o curso natural das coisas, e isto não diz respeito apenas à religião, mas a tudo. Só que, no caso da religião, esta situação demorou, mas finalmente ocorreu.

Mesmo assim, nesse espaço de tempo, surgiram várias novas religiões adequadas à sua época, fato este observado em qualquer país. Todavia, é comum que elas acabem desaparecendo porque dificilmente têm capacidade para superar as anteriores. Entre as religiões japonesas surgidas na Idade Moderna que ainda mantêm considerável influência, podemos citar Nitchiren Shu e Tenrikyo.

Até aqui me referi à trajectória das religiões de forma geral. Agora, desejo mostrar como são as religiões na atualidade.

É do conhecimento geral que, a partir do século XVIII, o desenvolvimento da cultura científica vem constituindo uma verdadeira ameaça às religiões e é fato inegável que isso contribuiu para sua decadência. A ciência dominou a tal ponto a mente humana, que, hoje, o ser humano só aceita o que vem da ciência. Não bastasse isso, esse comportamento deu origem ao pensamento ateísta, que leva à degeneração moral desenfreada, criando desordem social e transformando este mundo em um verdadeiro inferno. Ainda há religiões antigas que se esforçam para edificar o ser humano por meio de ensinamentos os quais foram sendo aperfeiçoados após sua elaboração, centenas ou milhares de anos atrás. Entretanto, por terem se distanciado demais da actualidade, falta a elas força de edificação e, falando francamente, a perda de adequação à realidade as torna meras antiguidades. Elas se assemelham às obras de arte, que, na época da sua criação, eram apreciadas em todo o seu esplendor, mas hoje perderam sua utilidade e estão limitadas a ser contempladas como meros patrimónios culturais. Dentre as novas religiões japonesas, há algumas que dão uma nova roupagem a esses patrimónios culturais para atrair as pessoas; mas, com certeza, terão existência limitada. Infelizmente, a religião foi superada pelo formidável progresso da cultura e ficou para trás. Exemplificando, é como se quiséssemos usar carros de boi e liteiras, algo de pouca utilidade numa época em que nos servimos de aviões, automóveis e da tecnologia sem fio.

Pode parecer um auto-elogio, mas preciso falar da nossa religião. Ela respeita a História, mas não se prende a isso: avança no tempo seguindo diretrizes próprias, de acordo com os desígnios de Deus. Além disso, por ser uma religião nova com sangue jovem correndo em suas veias, ela desenvolve atualmente projetos que abrangem a reforma da agricultura e da medicina e ainda aponta todas as falhas da cultura, adotando, como princípio norteador, o ideal de uma nova cultura. Uma das manifestações mais concretas desse ideal vem a ser a construção do modelo do Paraíso Terrestre e do Museu de Arte, obras de vanguarda, que, como locais sagrados, visam reconfortar as almas maculadas e exaustas de seus visitantes e, elevando o caráter humano, servem como antídoto contra os divertimentos vulgares, tão comuns nos dias de hoje.

De acordo com o exposto acima, no âmbito do indivíduo, nossa obra consiste em contribuir para a saúde física, para a superação da pobreza e para a melhoria do pensamento humano. No âmbito coletivo, sua finalidade é criar uma sociedade alegre e sem preocupações. Sentimo-nos imensamente felizes ao saber que, ultimamente, nosso trabalho está sendo reconhecido pelos mais esclarecidos e tornando-se alvo de sua atenção. Embora, no momento, seja um trabalho de pequena escala, quando ele for ampliado em âmbito mundial, surgirá, a partir do Japão, o plano de um mundo ideal, repleto de paz e felicidade. Afianço que isso não é, simplesmente, um sonho.

Portanto, o que vem a ser uma verdadeira religião viva, senão a nossa, com todos esses exemplos? O que me deixa desapontado é a sociedade actual, que olha as novas religiões com indiferença e desprezo. Isso ocorre principalmente na classe intelectual que, mesmo quando tem contato com a nossa religião, geralmente, evita expor o facto ao público. Entretanto, eu compreendo perfeitamente a razão desse comportamento. As religiões antigas geralmente contam com espantoso número de adeptos, mas estes, na maioria, são indivíduos de pouca cultura. Entre as religiões novas, há algumas que não despertam nenhum interesse devido às suas teorias e práticas excêntricas; outras possuem, em seus princípios, componentes supersticiosos em grande proporção que o bom senso nos leva a rejeitar. Creio que essa situação não durará muito tempo, mas desejo que todas as pessoas envolvidas reflitam sobre o assunto.

Há, também, os estudiosos de religiões que, para adaptar os antigos ensinamentos de santos, sábios e fundadores de religiões à época actual, os remodelam e dão a eles uma nova roupagem. Isso lhes confere uma aparência progressista e os torna de fácil aceitação pela classe intelectual, mas restam dúvidas quanto à sua utilidade para a vida prática.

O assunto me faz lembrar o pragmatismo de William James (1842–1910), renomado filósofo americano. Pragmatismo significa filosofia em acção; porém, eu proponho alterar para religião em acção.

4 de Novembro de 1953

Alicerce do Paraíso vol. 1

Título anterior: “Religião ativa”.
Nitchiren Shu: Religião da linhagem budista criada por volta de 1872, fundamentada nos ensinamentos do monge budista Nitchiren ou Nitchiren Shonin (1222-1282).
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